HISTÓRIA
DA INFÂNCIA: REFLEXÕES ACERCA DE ALGUMAS CONCEPÇÕES
CORRENTES
Rita de
Cássia Luiz da Rocha1
UNICENTRO,
Guarapuava-Paraná
Resumo:
O objetivo deste trabalho é refletir sobre algumas idéias do historiador
Philippe Ariès, que, através de pesquisa realizada utilizando como fonte
historiográfica a iconografia religiosa e leiga da Idade Média, aponta que a
construção do sentimento de amor pelas crianças foi, durante muitos séculos,
despercebido, sufocado, chegando mesmo a não existir. Sua tese indica o
surgimento da noção de infância apenas no século XVII, junto com as
transformações que começam a se processar na transição para a sociedade moderna.
Na história da construção do sentimento de infância, retratada pelo autor,
percebe-se que a trajetória da criança é marcada pela discriminação, marginalização
e exploração. Tais premissas podem ter seu contraponto através de autores como
Moysés Kuhlmann Jr., Jacques Gélis, Daniele Alexandre- Bidón e Pierre Richè,
que apontam os limites dessa tese e encaminham uma discussão que revela a
existência social da criança, dentro de espaços sociais como a família e a
escola, antes mesmo do século XVII. Discuto, partindo das reflexões dos autores
revisados, a construção de uma concepção de infância que ressalta a importância
da criança nas relações sociais ainda na Idade Média.
Palavras-chave:
história da infância; conceito de criança; educação infantil.
Abstract: The objective of this paper has been to
appraise the thought of historian Philippe Ariès, whose research using the
religious and lay iconography of the Middle Ages as a source for
historiography, indicates that the construction of the feeling of love by
children was unnoticed, suffocated, and even nonexistent for several centuries.
Ariès argues that
the notion of childhood appeared 1 Este trabalho integra as reflexões que estão
sendo feitas no encaminhamento da pesquisa de monografia de final de curso, sob
orientação da Professora. Ms. Magda Sarat de Oliveira, do Departamento de
Pedagogia da UNICENTRO, discutindo a história da criança e da educação
infantil.
ANALECTA
Guarapuava, Paraná v. 3 no 2 p. 51-63 jul/dez. 2002
only
in the 17th century, along with the changes in the process of transition into modern
society. The author´s portrayal of the history of the construction of the
feeling of childhood shows that the childs
path is marked by discrimination, exclusion and exploitation. Other
theoreticians such as Moysés Kuhlmann Jr., Jacques Gélis, Daniele Bidón and
Pierre Riché have pointed out the limitations of Ariès´s thesis, and argued
that children did have an existence within social spaces such as the family and
school even before the 17th century.
By
drawing on the reviewed authors, I have discussed the construction of a conception
of childhood that emphasizes the child´s importance in the social relations as
early as the Middle Ages. Key words: history of infancy; the concept of
childhood; education.
Resgatar
os antecedentes históricos da infância é dar voz a diferentes documentos hoje
pesquisados e que em determinados períodos testemunharam o papel da criança na
sociedade. Reis, padres, professores, pais, mães, vizinhos, gente rica, gente pobre
são porta-vozes da construção da infância no passado e continuam a ser no
presente. Ou seja, a concepção de criança é vivida e apreendida a partir das
construções feitas pelos adultos, nas quais, muitas vezes, a criança não pode discursar, defender-se ou falar sobre
si mesma. Se pudéssemos dar voz às crianças que estão nas casas, ruas,
instituições, buscando a construção de sua própria história, é possível que
elas nos relatem situações que envolvem sentimentos e sensações diferentes da
perspectiva do adulto. Sabemos que a história da criança é registrada a partir
do olhar dos adultos, pois a criança não pode registrar sua própria história.
Se fosse o caso de darmos voz a essas
crianças, certamente ouviríamos histórias de crianças relatando momentos de
alegria, encontrados no amor da família, no direito respeitado, nos espaços
para brincadeiras, enfim, nos encantos de sua vida, a partir da vivência de
situações agradáveis e felizes. Por outro lado, ouviríamos, também, histórias
de incompreensões sofridas, tristezas, atos de injustiça, violência física e
moral, desamparo, enfim, os desencantos com a vida a que um grupo grande de
crianças está exposto. Diante disso, temos uma indicação de que a infância não
acontece da mesma forma para todas as crianças e as histórias se diversificam a
cada experiência. A visão sobre a infância, atualmente, como um período
específico pelo qual todos passam é uma construção definida no momento
presente. A questão de que todos os indivíduos nascem bebês e serão crianças
até um determinado período, independente da condição vivida, é inegável,
entretanto, tal premissa nem sempre foi percebida dessa maneira e por diversos
períodos se questionou qual era o tempo da infância e quem era a criança.
O pesquisador francês Philippe
Ariès, em sua obra História Social da Criança e da Família, publicada em 1960,
vai apontar que o conceito ou a idéia que se tem da infância foi sendo
historicamente construído e que a criança, por muito tempo, não foi vista como
um ser em desenvolvimento, com características e necessidades próprias, e sim
como um adulto em miniatura. Nesse sentido, a história da infância surge como
possibilidade para muitas reflexões sobre a forma como entendemos e nos
relacionamos atualmente com a criança. Assim, gostaríamos de discutir a
respeito da construção do conceito de infância a partir de duas perspectivas: a
de Philippe Ariès, de que o sentimento da infância teria surgido apenas na
Modernidade, e dos apontamentos teóricos de Moysés Kuhlmann Jr., Jacques Gélis,
Daniele Alexandre-Bidón e Pierre Riché, que, em suas pesquisas, indicam a
presença de uma preocupação com as crianças em períodos anteriores, como a
Idade Média. A discussão sobre a importância e o surgimento da infância está
presente em pesquisas no campo da História, Sociologia, Filosofia, Psicologia,
Biologia, Antropologia, Arqueologia, entre outras, sendo possível o
entrelaçamento de diferentes olhares e autores, entre eles, FARIA (1999), DEL
PRIORE (1996-1999), KISHIMOTO (1988), FREITAS (1997), BADINTER (1985), POSTMAN
(1999), MONARCA (2001), ROSEMBERG (1995), GAGNEBIN (1997), ABRAMOVICH (1983),
CORAZZA (2000) e tantos outros que vêm contribuindo para enriquecer o
conhecimento sobre a questão. Justificase, portanto, considerá-la como
essencial para todos nós que trabalhamos com crianças em diversas instituições
de atendimento. ARIÈS é considerado o precursor da história da infância, pois
foi através de estudos realizados por ele com variadas fontes, como a
iconografia religiosa e leiga, diários de família, dossiês familiares, cartas,
registros de batismo e inscrições em túmulos, que surgem os primeiros trabalhos
na área de história, apontando para o lugar e a representação da criança na
sociedade dos séculos XII ao XVII. Baseando-se na história das mentalidades2,
ARIÈS (1981, p. 26) afirma: (...) é sempre, quer ou não, uma história
comparativa e regressiva. Partimos necessariamente do que sabemos sobre o
comportamento do homem de hoje, como de um modelo ao qual comparamos os dados
do passado com, a condição de, a seguir, considerar o modelo novo, construído
com o auxílio dos dados do passado, como uma segunda origem, e descer novamente
até o presente, modificando a imagem ingênua que tínhamos no início.
2 Ainda que DURKHEIM e MAUSS
tenham empregado ocasionalmente o termo, foi o livro de Lévi- BRUHL, La
mentalité primitive (1922), que o lançou na França. Assim mesmo, apesar de ter
lido Lévi- BRUHL, Marc BLOCH preferiu descrever seu Les Rois Thaumaturges
(1924), hoje reconhecido como uma obra pioneira na história das mentalidades,
como uma história de representações coletivas (termo proferido por DURKHEIM),
representações mentais, ou mesmo ilusões coletivas. Nos anos 30, FEBVRE introduziu
o vocábulo instrumental intelectual, mas não obteve grande sucesso. Foi Georges
LEFEBVRE,
um historiador situado nos limite do grupo dos Annales, que cunhou a frase
história das mentalidades coletivas. (BURKE, 1997, p. 131).
A história da criança contada por
Philippe Ariès No período de grandes transformações históricas, no caso, do
século XII ao XVII, foco de localização de sua pesquisa, a infância tomou
diferentes conotações dentro do imaginário do homem em todos os aspectos
sociais, culturais, políticos e econômicos, de acordo com cada período
histórico. A criança seria vista como substituível, como ser produtivo que
tinha uma função utilitária para a sociedade, pois a partir dos sete anos de idade
era inserida na vida adulta e tornava-se útil na economia familiar, realizando
tarefas, imitando seus pais e suas mães, acompanhado-os em seus ofícios,
cumprindo, assim, seu papel perante a coletividade. Com relação às idades da
vida humana, a pesquisa de ARIÈS aponta que a forma de representar a cronologia
humana passou por várias mudanças, indicando diferentes formas de representar
esses períodos. Tais representações utilizariam principalmente os elementos da
natureza, estudo dos astros, aspectos das crenças populares, fenômenos naturais
e sobrenaturais, os quais faziam parte de um contexto governado pelas leis da teologia,
enfatizando uma visão mística. Dessa forma, as representações da idade do homem
pareciam abstratas, além disso, muitos morriam antes de percorrer todos os
ciclos da vida. No caso da infância propriamente dita, o autor, partindo de
relatos e textos dos século XII ao XVIII, demonstra que as pessoas definiam a
idade da criança como ... a primeira idade é a infância que planta os dentes,
e essa idade começa quando nasce e dura até os sete anos, e nessa idade aquilo
que nasce é chamado de enfant (criança), que quer dizer não falante, pois nessa
idade a pessoa não pode falar bem nem formar perfeitamente suas palavras...
(ARIÉS, 1981, p. 36).
Nessa perspectiva, a fase da
infância seria caracterizada pela ausência da fala e de comportamentos
esperados, considerados como manifestações irracionais. A questão da ausência
da racionalidade também é apontada por PLATÃO, SANTO
AGOSTINHO e DESCARTES (GANEBIN,
1997). Nesse sentido, a infância se contrapõe à vida adulta, pois os
comportamentos considerados racionais, ou providos da razão, seriam
encontrados apenas no indivíduo adulto, identificando, assim, o adulto como o
homem que pensa, raciocina e age, com capacidade para alterar o mundo que o cerca;
tal capacidade não seria possível às crianças.
Observa-se que a passagem da vida
infantil para a vida adulta seria uma condição a ser superada: ... a passagem
da criança pela família e pela sociedade era muito breve e muito insignificante
para que tivesse tempo ou razão de forçar a memória e
tocar a
sensibilidade... (ARIÉS, 1981, p. 10). A infância nesse contexto seria
comparadaà velhice, pois se, de um lado, temos a infância constituída pela
falta de razão, por outro, teríamos a velhice marcada pela senilidade ...
porque as pessoas velhas já não têm os sentidos tão bons como já tiveram, e
caducam em sua velhice (...) o velho está sempre tossindo, escarrando e
sujando... (ARIÈS, 1981, p. 37). As demais idades, no caso, a juventude e a
vida adulta, caracterizar-se-iam pela sua força, virilidade e principalmente pelas
funções produtivas dentro da vida social e coletiva. Entende-se que foi uma
época
voltada ao poder da juventude.
Considerando essa questão, percebemos que, ainda hoje, na nossa sociedade, essa
situação é recorrente, à medida que há uma ênfase na valorização do indivíduo
produtivo, excluindo-se crianças e idosos de diversos setores e espaços sociais.
Assim, a história da criança contada por ARIÈS, destaca que as crianças foram
tratadas como adultos em miniatura: na sua maneira de vestir-se, na
participação ativa em reuniões, festas e danças. Os adultos se relacionavam com
as crianças sem discriminações, falavam vulgaridades, realizavam brincadeiras
grosseiras, todos os tipos de assuntos eram discutidos na sua frente, inclusive
a participação em jogos sexuais. Isto ocorria porque não acreditavam na
possibilidade da existência de uma inocência pueril, ou na diferença de
características entre adultos e crianças: ... no mundo das fórmulas românticas,
e até o fim do século XIII, não existem crianças caracterizadas por uma expressão
particular, e sim homens de tamanho reduzido... (ARIÈS, 1981, p. 51). Dessa
forma, as crianças eram submetidas e preparadas para suas funções dentro da
organização social. O desenvolvimento das suas capacidades se dá a partir das relações
que mantêm com os mais velhos. Portanto, percebe-se uma distância da idade adulta
e da infância em perspectiva cronológica e de desenvolvimento biológico, pois a
infância é retratada pelas afinidades que o adulto estabelece com a criança, ou
seja, tudo era permitido, realizado e discutido na sua presença.
O autor destaca, ainda, que foram
séculos de altos índices de mortalidade e de práticas de infanticídio. As
crianças eram jogadas fora e substituídas por outras sem sentimentos, na
intenção de conseguir um espécime melhor, mais saudável, mais forte que correspondesse
às expectativas dos pais e de uma sociedade que estava organizada em torno
dessa perspectiva utilitária da infância. O sentimento de amor materno não
existia, segundo o autor, como uma referência à afetividade. A família era
social e não sentimental.
Nessa
passagem, é possível apreender tal idéia: ...uma vizinha, mulher de um
relator, tranqüilizar assim uma mulher inquieta, mãe de cinco pestes, e que
acabara de dar à luz: Antes que eles te possam causar muitos problemas, tu
terás perdido a metade, e quem sabe todos... (ARIÈS, 1981, p. 56). Assim, as
crianças sadias eram mantidas por questões de necessidade, mas a mortalidade
também era algo aceito com bastante naturalidade. Outra característica da época
era entregar a criança para que outra família a educasse. O retorno para casa
se dava aos sete anos, se sobrevivesse. Nesta idade, estaria apta para ser
inserida na vida da família e no trabalho. Nesse contexto, as mudanças com
relação ao cuidado com a criança, só vêm ocorrer mais tarde, no século XVII,
com a interferência dos poderes públicos e com a preocupação da Igreja em não
aceitar passivamente o infanticídio, antes secretamente tolerado. Preservar e
cuidar das crianças seria um trabalho realizado exclusivamente pelas mulheres,
no caso, as amas e parteiras, que agiriam como protetoras dos bebês, criando uma
nova concepção sobre a manutenção da vida infantil, ...como se a consciência
comum só então descobrisse que a alma da criança também era imortal. É certo
que essa importância dada à personalidade da criança se ligava a uma
cristianização mais profunda dos costumes... (ARIÈS, 1981, p. 61). Dessa
forma, surgiram medidas para salvar as crianças. As condições de higiene foram
melhoradas e a preocupação com a saúde das crianças fez com que os pais não
aceitassem perdê-las com naturalidade. No século XIV, devido ao grande
movimento da religiosidade cristã, surge a criança mística ou criança anjo;
...essa imagem da criança associada ao Menino Jesus ou Virgem Maria, causa
consternação, ternura nas pessoas.
A representação da criança
mística, aos poucos, vai se transformando, assim como as relações familiares. A
mudança cultural, influenciada por todas as transformações sociais, políticas e
econômicas que a sociedade vem sofrendo, aponta para mudanças no interior da
família e das relações estabelecidas entre pais e filhos. A criança passa a ser
educada pela própria família, o que fez com que se despertasse um novo
sentimento por ela. ARIÈS caracteriza esse momento como o surgimento do
sentimento de infância, que será constituído por dois momentos, chamados por
ele de paparicação e apego. A paparicação seria um sentimento despertado pela
beleza, ingenuidade e graciosidade da criança. E isto fez com que os adultos se
aproximassem cada vez mais dos filhos. Assim, os gracejos das crianças eram
mostrados a outros adultos, fazendo dacriança uma espécie de distração,
tornando-se bichinhos de estimação, como cita ARIÈS (1981, p. 68): ...ela
fala de um modo engraçado: e titota, tetita y totata.... e (..) eu a amo
muito (...) ela faz cem pequenas coisinhas: faz carinhos, bate, faz o sinal da
cruz, pede desculpas, faz reverência, beija a mão, sacode os ombros, dança,
agrada, segura o queixo: enfim, ela é bonita em tudo o que faz. Distraio-me com
ela horas a fio.... Por essa necessidade de manter uma pessoa provida de tanta
beleza e graça, surgem medidas para salvá-la e garantir sua sobrevivência. As
condições de higiene foram melhoradas e a preocupação com a saúde das crianças
fez com os pais não aceitassem perder seus filhos com naturalidade e, os que
perdiam, aceitavam como sendo a vontade de Deus, segundo a orientação religiosa
da época.
Este sentimento, despertado
primeiramente nas mulheres, não era compartilhado por todas as pessoas; algumas
ficavam irritadas com a nova forma de tratar as crianças. ARIÈS cita, em suas
referências, a hostilidade de MONTAIGNE com
o novo
comportamento adotado: ...não posso conceber essa paixão que faz com as pessoas
beijem as crianças recém-nascidas, que não têm ainda movimento na alma, nem forma
reconhecível no corpo pela qual se possam tornar amáveis, e nunca permiti de
boa vontade que elas fossem alimentadas na minha frente... (MONTAIGNE3 , apud
ARIÈS, 1981, p. 159).
O
sentimento de apego surge a partir do século XVII, como uma manifestação da
sociedade contra a paparicação da criança, e propõe separá-la do adulto para
educá- la nos costumes e na disciplina, dentro de uma visão mais racional. 3
MONTAIGNE, M. Da afeição dos pais pelos filhos. In: Ensaios. São Paulo: Abril Cultural,
1994.
Assim, foi dentro desse contexto
moral que a educação das crianças foi inspirada, através do posicionamento de
moralistas e educadores e, principalmente, com o surgimento da família nuclear
gerada dentro dos padrões da cúria: o modelo de família conservadora, símbolo
da continuidade parental e patriarcal que marca a relação pai, mãee criança. A
preocupação da família com a educação da criança fiz com que mudanças ocorressem
e os pais começassem, então, a encarregar-se de seus filhos.
Conseqüentemente, houve a
necessidade da imposição de regras e normas na nova educação e a formação de
uma criança melhor doutrinada atendendo à nova sociedade que emergia. Tal
concepção de indivíduo que aparece faz com que a criança seja alvo do controle familiar
ou do grupo social em que ela está inserida.
Com o surgimento desse novo
homem, moderno, aparecem também as primeiras instituições educacionais,
permitindo a concepção de que os adultos compreenderam a particularidade da
infância e a importância tanto moral como social emetódica das crianças em
instituições especiais, adaptadas a essas finalidades... (ARIÈS, 1981, p.
193).
Com a evolução nas relações
sociais que se estabelecem na Idade Moderna, a criança passa a ter um papel
central nas preocupações da família e da sociedade. A nova percepção e
organização social fizeram com que os laços entre adultos e crianças, pais e
filhos, fossem fortalecidos. A partir deste momento, a criança começa a ser
vista como indivíduo social, dentro da coletividade, e a família tem grande
preocupação com sua saúde e sua educação. Tais elementos são fatores
imprescindíveis para a mudança de toda a relação social.
Um olhar diferente sobre a
infância de Ariès
Não podemos negar a contribuição
de Phillipe ARIÈS à história da criança e a indicação de que ela só aparece na
Idade Moderna, no entanto, contrapondo-se a essa proposição, Moysés KUHLMANN
JR., em sua obra Infância e Educação Infantil:
uma abordagem histórica,
referenciada por Pierre RICHÉ e Daniele ALEXANDREBIDON, além de Jacques GÉLIS,
aponta novas re-interpretações em suas pesquisas procurando a infância em
períodos anteriores.
Esses autores, dando voz a
diferentes documentos históricos, consideram que a percepção da infância pelos
adultos existia em idades mais remotas, ou seja, havia a preocupação com a
sobrevivência da criança, com a sua educação, sua religiosidade,
os cuidados com o seu corpo, com
sua alimentação, enfim, com uma época de aprendizagens, com brinquedos, roupas
e construção de móveis e objetos apropriados à criança.
Esse cruzamento de olhares nos
leva a pensar em outras perspectivas sobre a concepção da infância. KUHLMANN
JR. (1998, p. 22) nos dá pistas para compreendermos o período quando ele diz:
O sentimento de infância não seria inexistente
em tempos antigos ou na Idade
Média, como estudos posteriores mostraram. Em livros escritos pelos
historiadores Pierre Riché e Daniele Alexandre-Bidon (...), fartamente ilustrados
com pinturas e objetos, arrolam-se os mais variados testemunhos da existência de
um sentimento da especificidade da infância naquela época.
KUHLMANN JR. salienta que a
construção da infância de ARIÈS é uma percepção generalizante e linear, pois
sua pesquisa fundamenta-se em fontes de famílias abastadas e o historiador francês
pressupõe que o sentimento do amor pelas crianças
surge primeiramente no interior
dessas famílias, principalmente a partir da particularização da educação de
filhos homens. Ficaram à margem as fontes históricas populares, com poucos
registros da sua infância, devido à precariedade das condições econômicas.
Mesmo em abordagens que tomam a
infância em sua referência etimológica, como os sem-voz, sugerindo uma certa
identidade com as perspectivas da história vista de baixo, a história dos
vencidos, essa visão monolítica permanece e mantém um preconceito em relação às
classes subalternas, desconsiderando a sua presença interior nas relações
sociais. Embora reconhecendo o papel preponderante que os setores dominantes
exercem sobre a vida social, as fontes disponíveis, como, por exemplo, o diário
de Luís XIII, utilizado por Ariès, geralmente favorecem a interpretação de que
essas camadas sociais teriam
monopolizado a condução do
processo de promoção do respeito à criança. (KUHLMANN JR, 1998, p. 24).
Neste sentindo, percebe-se que a
história apontada por ARIÈS é uma história de meninos ricos, confirmando uma
educação diferenciada às duas infâncias, da criança rica para a criança pobre.
Por um lado, temos a criança rica, evidenciada principalmente na particularização
da educação de meninos, enclausurados num espaço íntimo com sua família,
ocupados com aprendizagens para a vida social, com regras de etiqueta e de moralidade
que deveriam saber e seguir, bem como a aprendizagem de música, dança, leitura
e a utilização de roupas adequadas às características da criança. Temos também
os
chamados precoces ou
prodígios por uma elite que acelerava o desenvolvimento de seus filhos
homens, para fazer demonstrações de seus dotes.
Por outro lado, é possível
inferir a existência da infância pobre percebida nas crianças do povo, filhos
de camponeses e artesões, vivendo em espaços compartilhados com todos,
participando das conversas com os adultos, nas praças com seus folguedos infantis,
nas reuniões noturnas, sem modos e talvez vestidas como adultos. Esta caracterização
das crianças do povo como indivíduos sem modos, livres, com comportamentos
inadequados, deve-se ao fato de que o conceito de pudor e vergonha
são valores que foram sendo
construídos a partir das relações das famílias abastadas, sendo uma relação que
se constrói verticalmente das classes altas para as baixas. Todavia, isso não
quer dizer que o sentimento ou a educação, mesmo informal, das crianças pobres não
existisse.
Portanto, as aprendizagens
ocorriam nas famílias de todas as crianças, pobres e ricas, e a cultura dessas
duas infâncias tem como parâmetro os laços com o mundo dos adultos,
possibilitado, principalmente, pela liberdade em espaços compartilhados; a
criança presenciava experiências que resultavam dessas relações: aprendia
convivendo.
Nessa ótica da importância das
relações familiares com a criança, Jacques GÉLIS vai destacar que tais relações
eram muito importantes, pois todos compartilhavam em tudo, ou seja, um dependia
do outro: nesse imaginário da vida e do corpo, a criança era considerada um
rebento do tronco comunitário, uma parte do grande corpo coletivo que, pelo
engaste das gerações, transcendia o tempo. Assim, pertencia à linhagem tanto quanto
aos pais. Neste sentido, era uma criança pública. (GÉLIS, 1991, p. 313).
Diante disso, observa-se que a
presença da criança no seio familiar era muito significativa, pois ela marca a
sucessão parental e, sendo ela considerada pública, evidenciase a preocupação
que a família tinha em garantir a sobrevivência da criança e,
principalmente, sua educação,
pois, influenciada pelos familiares ou vizinhos, a infância era uma época de
aprendizagens: as aprendizagens da infância e da adolescência deviam, pois, ao
mesmo tempo fortalecer o corpo, aguçar os sentidos, habilitar o indivíduo a superar
os revezes da sorte e, principalmente, a transmitir também a vida, a fim de
assegurar a continuidade da família (GÉLIS, 1991, p. 315). Diante deste
contexto, o pai e a mãe seriam os responsáveis por esta primeira educação,
diferente do que ARIÈS destaca em sua pesquisa a família e principalmente a
mãe não possuiriam a sensibilidade ou o apego pelos seus filhos.
Assim, não podemos generalizar
afirmando que toda a sociedade medieval pais, mães, enfim todos que habitavam
com as crianças visse as crianças apenas como servidora e sujeito produtivo,
numa perspectiva utilitária da infância, nem que todo o
sentimento, no caso, o amor,
envolvido nestas relações ficasse alheio a elas ou não existisse.
Quanto a isso, o autor vai dizer
que a indiferença medieval pela criança é uma fábula e, no século XVI, como
vimos, os pais se preocupavam com a saúde e a cura de seu filho.
Assim, devemos interpretar a
afirmação do sentimento da infância no século XVIII.
(GÉLIS4
apud KUHLMANN JR, 1998, p. 23).
Sendo a educação ou a
institucionalização da criança responsabilidade da família, percebe-se que os
filhos são frutos da possibilidade da ascensão social. Pais enxergam através de
seus filhos a possibilidade da administração dos bens familiares e, conseqüentemente,
a ampliação dessa possessão. A educação seria, pois, o cerne desse processo de
elevação. Observa-se que, mesmo que as crianças ricas tivessem alguns privilégios
com relação à sua educação, as crianças das classes populares possuíram também
proteção, mesmo não sendo especificadamente da família: se é difícil encontrar
registros das classes populares, há um amplo conjunto de documentos no âmbito
da vida pública, envolvendo as iniciativas destinadas ao atendimento aos pobres
e aos trabalhadores. (KUHLMANN JR, 1998, p. 25).
4 GÉLIS, J. A individualização da
criança. In: ARIÈS, P.; CHARTIER, R. (Org.). História da vida privada:
da Renascença ao Século das
Luzes. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Cia das Letras, 1991, p. 311 - 329.
(Coleção História da Vida
Privada, v.3).
Neste sentido, o sentimento da
afetividade dos pais pela criança parece ser expressivo. Ainda que o amor
materno seja um fator muito particular de cada mulher, é inegável que a
capacidade de gerar filhos só é possível a ela. Entretanto, o cuidar das crianças
ou a preocupação com sua educação passa a ser uma das responsabilidades atribuídas
à mulher em uma sociedade que emergia. Nesse contexto, concordamos com GÉLIS
quando ele aponta que por certo, a natureza continua a falar em favor do
filho criado pela mãe; porém esta tem apenas deveres; doravante pretende ter
também o direito de viver e recebe a aprovação do marido quando manifesta o
desejo de manter um corpo íntegro e atraente (GÉLIS, 1991, p. 321). Portanto,
as referências nos indicam que vínculos foram estabelecidos, pois seria
improvável que os adultos ficassem tantos séculos entorpecidos sem manifestarem
qualquer sentimento pelas crianças.
Apontamentos finais
Acredito que, mesmo com as novas pesquisas
que referenciam a infância, ainda temos dificuldades de entender o feito
particular da criança, pois sabemos que a sua história é construída pelo
adulto: seus valores, suas aprendizagens e experiências
estabelecem-se a partir dessas
relações.
No início do estudo, a afirmação
atribuída a ARIÈS o sentimento de infância surge somente no século XVII e a
afirmação de que a infância teria sido esquecida, sendo a criança remetida a um
lugar pouco significativo na sociedade, são referências que nos permitem pensar
em um tempo sem criança. Partindo deste pressuposto, tornou-se estimulante e
significativo sistematizar algumas considerações sobre a infância,
principalmente através da contribuição de outros teóricos sobre a questão,
apontando a importância da criança nas relações sociais e discutindo o
surgimento social da infância.
Os
pontos mais instigantes sobre os teóricos que discutem a concepção da infância
com ARIÈS nos parecem ser a preocupação com o lugar que as crianças ocupavam no
seio da família e a tentativa de elucidar essa existência social. Nas famílias
bastadas,
evidencia-se como modismo dar a
criança para outra família cuidar e educar. Será que o mesmo ocorria nas
famílias mais pobres? Mesmo nas famílias mais simples, a preocupação da mãe em
dar seu filho para outro criar não possibilitaria pensar que o cuidado com a vida
da criança poderia se estabelecer também nessas ações? A volta da criança aos
sete anos ao núcleo da família poderia ser interpretada como um retorno a
pessoas estranhas?
Se a criança fosse educada por
uma família que não era a sua e voltasse mais tarde com costumes e valores
vivenciados por outro grupo, não estariam aí sendo construídos vínculos com
outra família? Neste sentido, pode-se concluir que a criança, mesmo estando
separada, estabelece vínculos com outras pessoas, ainda que não seja sua
família biológica, vínculos
de aprendizado, afetividade e
convivência. Por outro lado, temos a própria família que, ao permitir a saída
da criança, poderia estar pensando em melhorar suas condições de vida.
Então, parece-nos ser improvável
que o sentimento do amor pelas crianças não existisse, pois, formal ou
informalmente, esta criança vivia dentro de um contexto familiar. Outro aspecto
significativo relaciona-se à preparação da criança para o futuro
adulto, quando a perspectiva do
vir a ser foi propagada como forma de garantir a sobrevivência em tempos tão
incertos. Nesse sentido, seria necessário que a criança fosse a imitação de
seus pais. Assim, percorrendo as transformações históricas, temos a infância rica,
que foi registrada nos anais da história, e a infância pobre, que foi esquecida
dos mesmos. Histórias de meninos bem educados, precoces, doutrinados e outros
livres, percorrendo as ruas e seguindo o modelo do pai trabalhador, mostrando
que, tanto a infância rica quanto a pobre criaram espaços e estabeleceram suas
regras a partir das práticas com os adultos.
Essa discussão nos remete à
necessidade de pesquisas na área que possam aprofundar e elucidar as questões
da infância e as suas transformações, principalmente no que diz respeito às
concepções da condição da criança enquanto ser social, sujeito ativo, uma
criança concreta que ocupa um lugar na história através de relações sociais que
se estruturam a cada dia. Dessa forma, pensar a criança na história significa
considerá-la como sujeito histórico, e isso requer compreender o que se entende
por sujeito histórico.
Para tanto, é importante perceber
que as crianças concretas, na sua materialidade, no seu nascer, no seu viver ou
morrer, expressam a inevitabilidade da história e nela se fazem presentes, nos
seus mais diferentes momentos. (KUHLMANN JR, 1998, p. 33).
Nesse contexto, o estudo não
termina. Há uma grande preocupação de estudiosos em desvendar os caminhos da
infância na atualidade, com todas as suas implicações. Temos registros de
meninos e meninas com suas histórias marcantes e
presenciamos a infância de muitas
dessas crianças que vivem à margem da sociedade, experimentando o abandono, os
maus-tratos, a pobreza, sendo exploradas no trabalho infantil, na mídia, no
abuso precoce da sua sexualidade e nas tentativas de modelagem à imagem e
semelhança do adulto. Vemos crianças que já lutam pela sobrevivência, por uma
vida digna e uma educação básica de qualidade. E também as crianças presas em castelos-condomínios,
rodeadas por videogame, computadores, televisão, supervisionadas constantemente
por babás e professoras interessadas em efetivar uma educação restrita aos seus
padrões sociais.
Enfim, nessa multiplicidade de histórias,
conhecer as particularidades de cada criança e compreender suas necessidades e
reconhecer sua existência concreta é o grande desafio que nós, adultos, temos
que enfrentar, promovendo a transformação da vida da infância a partir dos
nossos relacionamentos, pois a história está aí para ser construída por todos
os envolvidos e por aqueles que acreditam que a criança foi e será sempre
agente de mudanças.
Referências
ABRAMOVICH,
F. (Org.). O mito da infância feliz: antologia. São Paulo: Summus,
1983 (Coleção
Novas Buscas em Educação, vol. 16) .
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