O gays lutaram e conquistaram direitos
iguais no casamento. O próximo passo é pensar em família e filhos. Mas o que
acontece com crianças que são criadas por gays? A resposta: algumas coisas -
mas nenhuma daquelas que você imaginava
por Carol Castro
Começo de ano é sempre igual na escola
de Theodora: cada aluno se apresenta e mostra as fotos da família. Pode ser que
a menina da primeira carteira seja filha de um engenheiro e uma arquiteta e o
pai do menino de cabelos vermelhos chefie a cozinha de um restaurante.
Theodora, naturalmente, vai contar sobre a escola de cabeleireiros dos pais.
Dos dois pais - Vasco Pedro da Gama e Júnior de Carvalho, juntos há quase 20
anos. Theodora não hesita em explicar para os colegas: não mora com a mãe e tem
dois pais gays. Ela passou 4 anos num orfanato, até 2006, quando uma juíza de
Catanduva, interior de São Paulo, autorizou a adoção. Nos próximos meses, a
família vai crescer: o casal espera a guarda de uma nova
menina, de apenas alguns meses de idade.
Na outra metade do mundo, a história com pais gays da americana Dawn
Stefanowicz foi diferente. Por toda a vida, Dawn conviveu com a visita dos
vários namorados do pai. Ele recebia homens em casa, embora ainda morasse com a
mãe de Dawn- o casal já
não se relacionava. Ela segurou as pontas em silêncio durante a infância,
adolescência e início da fase adulta. Mas depois dos 30 se rebelou contra a
situação. "A decisão do meu pai de não gostar mais de mulheres mudou minha
vida. Os namorados dele sempre o afastaram, e ele colocava o trabalho e os
namorados acima de mim", diz.
Dawn e Theodora fazem parte de um novo tipo de família. Somente nos EUA,
segundo estimativa da Escola de Direito da Universidade da Califórnia, 1 milhão
de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais criam atualmente cerca de 2 milhões
de crianças. E cada vez mais casais gays optam por criar seus próprios filhos.
Segundo o mesmo instituto, em 2009, 21.740 casais homossexuais adotaram
crianças - quase o triplo do número de 2000. A estimativa é que cerca de 14
milhões de crianças, em todo o mundo, convivam com um dos pais gays. Por aqui,
onde mais de 60 mil casais gays vivem numa união estável (reconhecida perante a
lei apenas no ano passado), a história é mais recente. O caso de Theodora foi a
primeira adoção por um casal gay. E isso não faz tanto tempo
assim - só 6 anos.
É justamente por ser tão recente que o assunto gera dúvidas, preconceitos e
medos. Quais as consequências na personalidade de uma criança se ela for criada
por gays? A resposta dos estudos é bem clara: perto de zero. "As pesquisas
mostram que a orientação sexual dos pais parece ter muito pouco a ver com com o
desenvolvimento da criança ou com as habilidades de ser pai. Filhos de mães
lésbicas ou pais gays se desenvolvem da mesma maneira que crianças de pais
heterossexuais", explica Charlotte Patterson, professora de psiquiatria da
Universidade da Virginia e uma das principais pesquisadoras sobre o tema há
mais de 20 anos.
Como, então, explicar as queixas de Dawn e a vida tranquila de Theodora?
"O desenvolvimento da criança não depende do tipo de família, mas do
vínculo que esses pais e mães vão estabelecer entre eles e a criança. Afeto,
carinho, regras: essas coisas são mais importantes para uma criança crescer
saudável do que a orientação sexual dos pais", diz Mariana Farias, psicóloga
e autora do livro Adoção por Homossexuais - A Família Homoparental Sob o Olhar
da Psicologia Jurídica. Enquanto Theodora mantém uma relação próxima dos pais,
com conversas abertas sobre sexualidade, Dawn não teve a mesma sorte. Para
piorar, ela cresceu em um ambiente ríspido e promíscuo (o pai levava diferentes
homens para casa e não lhe deu atenção durante os anos mais importantes de sua
formação). Mesmo assim, sobram mitos em torno da criação de filhos por pais e
mães gays. Veja aqui o que a ciência tem a dizer sobre eles.
Mito 1. "Os filhos serão gays!"
A lógica parece simples. Pais e mães gays só poderão ter filhos gays, afinal,
eles vão crescer em um ambiente em que o padrão é o relacionamento homossexual,
certo? Não necessariamente. (Se fosse assim, seria difícil, por exemplo,
explicar como filhos gays podem nascer de casais héteros.) Um estudo da
Universidade Cambridge comparou filhos de mães lésbicas com filhos de mães
héteros e não encontrou nenhuma diferença significativa entre os dois grupos
quanto à identificação como gays. Mas isso não quer dizer que não existam
algumas diferenças. As famílias homoparentais vivem num ambiente mais aberto à
diversidade - e, por consequência, muito mais tolerante caso algum filho queira sair do armário ou ter
experiências homossexuais. "Se você cresce com dois pais do mesmo sexo e
vê amor e carinho entre eles, você não vê nada de estranho nisso", conta
Arlene Lev, professora da Universidade de Albany. Mas a influência para por aí.
O National Longitudinal Lesbian Family Study é uma pesquisa que analisou 84
famílias com duas mães e as comparou a um grupo semelhante de héteros. Ainda
entre as meninas de famílias gays, 15,4% já experimentaram sexo com outras
garotas, contra 5% das outras. Já entre meninos, houve uma tendência contrária:
5,6% nos adolescentes criados por mães lésbicas tiveram experiências sexuais
com parceiros do mesmo sexo - mas menos do que os que cresceram em famílias de
héteros, que chegaram a 6,6%. Ou seja, não dá para afirmar que a orientação
sexual dos pais tenha o poder de definir a dos filhos.
Mito 2. "Eles precisam da figura de um pai e de uma mãe"
Filhos de gays não são os únicos que crescem sem um dos pais. Durante a 2ª
Guerra Mundial, estima-se que 183 mil crianças americanas perderam os pais. No
Brasil, 17,4% das famílias são formadas por mulheres solteiras com filhos. Na
verdade, os papéis masculino e feminino continuam presentes como referência
mesmo que não seja nos pais. "É importante que a criança tenha contato com
os dois sexos. Mas pode ser alguém significativo à criança, como uma avó. Ela
vai escolher essa referência, mesmo que inconsciente-mente", explica
Mariana Farias. Se há uma diferença, ela é positiva. "Crianças criadas por
gays são menos influenciadas por brincadeiras estereotipadas como masculinas ou
femininas", diz Arlene Lev. Uma pesquisa feita com 56 crianças de gays e
48 filhos de héteros apontou a maior probabilidade de meninas brincarem com
armas ou caminhões. Brincam sem as amarras dos estereótipos e dos preconceitos.
Mito 3. "As crianças terão problemas psicológicos por causa do
preconceito!"
Elas sofrerão preconceito. Mas não serão as únicas. No ambiente infantil,
qualquer diferença - peso, altura, cor da pele - pode virar alvo de piadas. Não
é certo, mas é comum. Uma pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas
Econômicas com quase 19 mil pessoas mostrou que 99,3% dos estudantes
brasileiros têm algum tipo de preconceito. Entre as ações de bullying, a maioria
atinge alunos negros e pobres. Em seguida vêm os preconceitos contra
homossexuais. No caso dos filhos de casais gays analisados pelo National
Longitudinal Lesbian Family Study, quase metade relatou discriminação por causa
da sexualidade das mães. Por vezes, foram excluídos de atividades ou
ridicularizados. Vinte e oito por cento dos relatos envolviam colegas de
classe, 22% incluíam professores e outros 21% vinham dos próprios familiares.
Felizmente, isso não é sentença para uma vida infeliz. Pesquisas que comparam
filhos de gays com filhos de héteros mostram que os dois grupos registram
níveis semelhantes de autoestima, de relações com a vida e com as perspectivas
para o futuro. Da mesma forma, os índices de depressão entre pessoas criadas
por gays e por héteros não é diferente.
Mito 4. "Essas crianças correm risco de sofrer abusos sexuais!"
Esse mito é resquício da época em que a homossexualidade era
considerada um distúrbio. Desde o século 19 até o início da década de 1970, os
gays eram vistos como pervertidos, portadores de uma anomalia mental
transmitida geneticamente. Foi só em 1973 que a Associação de Psiquiatria
Americana retirou a homossexualidade da
lista de doenças mentais. É pouquíssimo tempo para a história. O estigma de
perversão, sustentado também por líderes religiosos, mantém a crença sobre o
"perigo" que as crianças correm quando criadas por gays. Até hoje, as
pesquisas ainda não encontraram nenhuma relação entre homossexualidade e
abusos sexuais. Nenhum dos adolescentes do National Longitudinal Lesbian Family
Study reportou abuso sexual ou físico. Outra pesquisa, realizada por três
pediatras americanas, avaliou o caso de 269 crianças abusadas sexualmente.
Apenas dois agressores eram homossexuais. A Associação de Psiquiatria Americana
ainda esclarece: "Homens homossexuais não tendem a abusar mais sexualmente
de crianças do que homens heterossexuais".
Dá para adotar no Brasil?
A lei de adoção brasileira deixa brechas para a adoção por gays sem fazer
referência direta a esse tipo de família. Em 2009, quando houve mudanças na
legislação, casais com união estável comprovada puderam entrar com pedido de
adoção conjunta, sem o casamento civil. Em maio de 2011, o Supremo Tribunal
Federal (STF) garantiu o reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo
sexo, fazendo valer também a eles os direitos previstos para casais héteros.
Apesar das conquistas, uma pesquisa do Ibope revelou que 55% dos brasileiros
são contra a união estável e a adoção de crianças por casais homossexuais.
Para saber mais
Adoção por Homossexuais - A Família Homoparental sob o Olhar da Psicologia
Jurídica
Mariana de Oliveira Farias e Ana Cláudia Bortolozzi, Juruá, 2009.
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